segunda-feira, 22 de junho de 2015

Os injustiçados - A censura à música brega na Ditadura Militar

Wando
Censura à música brega na ditadura militar: quando falamos em censura na música brasileira durante a ditadura, os primeiros nomes que nos vêm à cabeça são os de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. No entanto, um outro grupo, igualmente importante para a cultura nacional, também fora extremamente perseguido, e não apenas pelo governo, mas também pela própria sociedade: os cantores de música brega. Por serem considerados como cantores do povão, de valor desprezado por muitos críticos e historiadores musicais, pouco se fala a respeito da censura política e social que esses artistas, verdadeiros cronistas do cotidiano amoroso, sofreram durante o regime.

Um apartheid musical

Paulo César de Araújo, autor da biografia censurada de Roberto Carlos, também é o autor da obra Eu Não Sou Cachorro Não, que fala justamente sobre a censura à música brega na ditadura militar, a perseguição que os cantores de música brega sofriam durante o regime. Segundo o historiador, “A memória construída sobre o período só valorizou a resistência dos cantores da MPB. No entanto, cantores como Odair José, Nelson Ned e Wando também foram proibidos, e isso se deveu não apenas a uma censura política, mas também a uma censura moral, visto que não se podia falar de cama, de pílula, de sexo”. E foi principalmente essa a censura que os cantores bregas sofreram.
Odair José
As músicas do radinho da empregada, como eram conhecidas as canções românticas, provocavam verdadeiras revoluções comportamentais via FM. Em plena década de 1970, quando questões como o divórcio ainda eram mal vistas, quem teria coragem para falar sobre o amor de um homem por uma prostituta? Quem falaria sobre a virgindade ou sobre o adultério? Eram os cantores populares que tocavam nesses tabus e, como conta Araújo, havia um apartheid na música brasileira: a canções consideradas cafonas eram para o povão, enquanto a MPB era consumida pela classe média.
A maior parte da produção dos cantores populares dizia respeito ao amor e à sexualidade. Eram, e ainda são, cronistas do amor, escrevendo, em forma de música, sobre os dilemas, os desejos, as aventuras e desventuras do que acontece entre quatro paredes e, principalmente, dentro do coração. No entanto, apesar de falarem sobre assuntos que faziam parte da vida de qualquer pessoa, a censura à música brega na ditadura militar foi barra pesada, principalmente para Odair José.
“Odair José foi um dos cantores mais censurados da música brasileira, e não apenas da música brega”. Como conta Araújo, o cantor gostava de tocar em temas tabus, porque sabia que a sociedade precisava discutir esses assuntos, que não adiantava fechar os olhos para questões que eram importantes.
Um dos episódios mais emblemáticos de censura ao cantor é o da música Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula). Na época, então no ano de 1973, o governo brasileiro desenvolvia uma campanha de natalidade, que estimulava o uso da pílula entre os mais pobres, pois -quanta ignorância!- o Estado acreditava que o nascimento de filhos de pessoas pobres era a causa da pobreza no país. A pílula era distribuída principalmente nas periferias da região Nordeste, e a iniciativa havia sido financiada pelo Banco Mundial. “Nesse contexto, auge da ditadura Médici, quando havia cartazes espalhados dizendo ‘Tome a Pílula Com Muito Amor’, surge uma música no rádio, de sucesso estrondoso, dizendo ‘Pare de Tomar a Pilula’. A canção de Odair José foi considerada como um ato de desobediência civil e foi proibida de ser executada nas rádios, mesmo depois de já ter sido lançada”, conta Araújo.
E não foi só o governo que se opôs à canção. Apesar de ser contra o uso da pílula, a Igreja achava que a música ajudava a divulgar o uso do anticoncepcional, e também a censurou. Grupos conservadores de classe média também se opuseram, pois consideravam que esse era um assunto que não deveria ser tratado de maneira tão explícita.
“Um outro caso emblemático, também com o Odair José, é o da canção Em Qualquer Lugar que dizia ‘Em qualquer lugar a gente se ama, dentro do meu carro, embaixo do chuveiro, no jardim’. Essa canção, mesmo tendo sido gravada, não conseguiu ser inserida no disco. Apesar de ser uma letra que não tem nada de mais, para a época aquilo era uma afronta, e a censura, inclusive, escreveu: ‘A música relata um casal fazendo sexo como dois animais’. Embora Odair tenha recorrido e modificado a letra, a canção foi inteiramente proibida”.
Mas os bregas também falavam de política e, obviamente, também tinham que driblar a censura para isso. Luiz Ayrão, em 1977, lançou a canção O divórcio, que, de maneira muito inteligente, usava a metáfora da separação amorosa para falar sobre a insatisfação com o regime imposto em 1964: “Treze anos eu te aturo/ Eu não aguento mais/ Não há Cristo que suporte/ Eu não suporto mais”.

Senhora dos absurdos

A ditadura foi capaz de censuras que não tinham o menor fundamento. Waldick Soriano, cantor de boleros românticos, teve a música Tortura de amor censurada apenas por incluir a palavra “Tortura”, sendo que a letra não tinha nenhum conteúdo político, mas apenas amoroso: “Hoje que a noite está calma/ E que minh’alma esperava por ti/Apareceste afinal/Torturando este ser que te adora”. Eram tempos de rigidez, mas não se pode cometer a injustiça de imaginar que a música brega não foi atingida. Um dos gêneros musicais mais importantes do país foi censurado sim, e isso dura até os dias de hoje. Afinal, a ditadura pode ter passado, mas grande parte da sociedade ainda torce o nariz para as letras populares, para a arte de cantores cujo grande pecado é falar sem pudores sobre amor.

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