A Lei Maria da Penha mesmo que de forma tímida, traz no parágrafo único do artigo 5º,
bem como no artigo 2º, que, para a mulher, as suas relações amorosas, bem como
a proteção da sua dignidade, independem da orientação sexual, neste caso, foi
reconhecida não apenas a condição da lésbica como mulher, mas também a
possibilidade dessas mulheres constituírem família. Mesmo que o Estado ainda
não seja efetivo no combate à violência homofóbica, não considerando, ainda,
como crime a prática de preconceito contra os/as homossexuais, este foi um grande
avanço aos direitos lésbicos. Em relação aos/as LGBTI a aplicação, mesmo que
jurisprudencial (ainda), já mostra uma grande força quando se trata de
transexuais, transgêneros e travestis, que se identificam como mulher. A Lei
Maria da Penha, portanto, traz uma grande inovação, principalmente diante de um
sistema normativo tão excludente às minorias sociais.
Há de
se ressaltar ainda que, mesmo não expondo de forma tácita, o conceito de
família ganha novos contornos com a Lei, o que antes era restrito às/aos
parceiras/os de sexos opostos, agora reconhece, de forma efetiva, a validade da
união de pessoas do mesmo sexo, fugindo do padrão tradicional de homem-mulher.
Vale dizer que, o sistema jurídico brasileiro já considera parceiros/as do
mesmo sexo como casal, contudo esse é um avanço conquistado por meio das lutas
dos Movimentos LGBTI, aliado aos avanços do Poder Judiciário. Todavia, no campo
legislativo, tanto a Carta Maior, como também alguns dispositivos
infraconstitucionais, permanecem afogados no conservadorismo cristão. Acerca
disso, assinala Maria Berenice Dias:
No
momento em que as uniões de pessoas do mesmo sexo estão sob a tutela da lei que
visa a combater a violência doméstica, isso significa, inquestionavelmente, que
são reconhecidas como uma família, estando sob a égide do direito de família.
Não mais podem ser reconhecidas como sociedades de fato, sob pena de se estar
negando vigência à lei federal. Consequentemente, as demandas não devem
continuar tramitando nas varas cíveis, impondo-se sua distribuição às varas de
família. Diante da definição de entidade familiar, não mais se justifica que o
amor entre iguais seja banido do âmbito da proteção jurídica, visto que suas
desavenças são reconhecidas como violência doméstica. (DIAS, 2014).
Entretanto,
apesar da mudança positiva para a comunidade LGBTI, esse avanço não visa
proteger todos/as e o pior: está condicionado a uma ação jurisprudencial, visto
que a Lei não abarca todas as possibilidades existentes da incidência da
violência doméstica. Para tanto, o estudo em questão enfatiza as teorias da performatividade e desbiologização como fundamento para a
ampla aplicação desta Lei para todos os indivíduos.
A
teoria do gênero performático de Judith Butler anda lado a lado com a teoria da
desbiologização da jurista Maria Berenice Dias. Na primeira, o sujeito será
desconstruído, ou seja, não vai pertencer aos estereótipos construídos e
consolidados culturalmente, neste caso, o sujeito é uma pessoa e nada mais que
isso, no qual, estarão todos em par de igualdades no espaço público e no espaço
privado. Já na segunda, apesar de não haver uma desconstrução do sujeito, os
fatores que os limitam a um determinado grupo é irrelevante para determinar se
estes/as podem ou não constituir família, logo, qualquer sujeito que tenha como
base do relacionamento a afetividade estará constituindo uma entidade familiar.
É por meio dessas duas prerrogativas que se defende a plena aplicação da Lei
Maria da Penha a todos os indivíduos, independe de sexo, gênero, identidade de
gênero ou orientação sexual, pois todos/as estão passíveis a sofrer violência
doméstica quando estão em um relacionamento amoroso com outro sujeito. Pois,
como tratado anteriormente, há incidência de relações de poder e hierarquização
em qualquer relacionamento, seja ele amoroso ou não, e perpassam qualquer
limitação conceitual de sujeito.
Deste
modo, para a aplicação da Lei não seria levado em consideração a condição de
“mulher” do sujeito, o seu gênero normatizado socialmente; mas sim como ponto
determinante para o enquadramento da violência doméstica: a constituição
familiar baseada no afeto. Importante dizer que, o que se busca aqui é a ampla
aplicação da Lei a todos aqueles que de alguma forma sofrerem violência
doméstica, independente do sexo, gênero, identidade de gênero ou orientação
sexual. Uma vez que independe do seu estereótipo ou do seu enquadramento
social: qualquer indivíduo está sujeito a sofrer violência doméstica. Logo,
aqui, não se objetiva romper com todo o histórico de sofrimento e de luta pela
qual a mulher passou, não é ignorar nem muito menos esquecer como emergiu a Lei
Maria da Penha, diante da sociedade patriarcal e machista, em que chegar a essa
conquista há um caminho marcado por uma trajetória árdua, de muito silêncio e
impunidade. Expandir a aplicação desse dispositivo, não é negar a história da
Maria da Penha, não é negar a sua agressão, o seu sofrimento e os longos anos
em busca de justiça. É o contrário. O que se busca é sanar uma impunidade que
emerge socialmente, e que a justiça – novamente – coloca a venda nos seus
olhos, mas não para aplicar de forma justa sem ver a quem, mas sim para
consolidar uma cegueira que é histórica, aquela que não enxerga,
reiteradamente, as minorias sociais. O principal alvo da violência doméstica é
a mulher, mas isso não exime as/os demais cidadãs/os de também sofrer. Como
defende Butler (2003), os sujeitos são sujeitos. E como pessoas, independente
de estereótipos, é que se deve enxergá-los.
*O artigo do dia foi retirado de um capítulo do meu trabalho monográfico (Aplicação da Lei Maria da Penha para os Sujeitos LGBTI: performatividade e entidade familiar).
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