Os sujeitos, independentemente do seu sexo biológico, gênero,
identidade ou orientação sexual, almejam se adequar no meio em que estão
inseridos, para assim poderem viver e praticar todos os atos que lhe são
permitidos em sociedade. Para tanto, há uma gama de padrões culturais impostos
e já explanados anteriormente. Os sujeitos da diversidade sexual rompem com a
lógica binária heteronormativa, pois eles/as estão distantes do que é
normalizado e normatizado. Deste modo, a lógica de sexo, gênero, identidade e
orientação sexual realmente ganha novos contornos, pois a continuidade e
coerência expostas anteriormente são desconstruídas por esses sujeitos, em prol
da fidelidade do que há de mais íntimo dentro de si, sendo esta a real
expressão do seu ser. Então, esse padrão binário é rompido, seja pelo sexo
biológico, quando se tem a presença do/a intersexual ou do/a transexual que
chega à cirurgia de mudança de sexo objetivando atingir uma coerência entre
sexo-corpo-gênero; seja pelo/a homossexual, que não apresenta os aspectos
básicos da orientação sexual da matriz da heterossexualidade; ou pelo/a
transgênero que não apresenta conformidade com as limitações de gênero impostas
culturalmente, mas rompe com essa limitação.
Apesar de a lógica binária heteronormativa ser rompida em
um primeiro momento, há de se ressaltar que essa mesma lógica será (re)produzida
por esses sujeitos, não da forma habitual e naturalizada, mas sim no momento em
que esses sujeitos da diversidade sexual incorporam – em sua expressão –
características inerentes ao que já está imposto, normatizado. Por exemplo, o/a
homossexual, dentro da sua relação amorosa, adota papéis preexistentes. Seja o papel
do gênero masculino, seja o do gênero feminino – pois estes são seus únicos
referenciais -, não existe um referencial homossexual, assim como não existe uma
estrutura diversificada. O que é ensinado desde o nascimento é a reprodução de
um padrão já consagrado, tanto no seu comportamento em sociedade, como no
espaço privado, na relação amorosa. Isto é, em um relacionamento amoroso, a
definição dos sujeitos amorosos e dos seus lugares, enquanto parceiros/as, são
evidenciados a partir do seu gênero. Concomitantemente a isso, existe a
necessidade de procriação, que firma o pacto sagrado entre homem e mulher em
uma relação. Assim sendo, os modos
de ordenar relacionamentos afetivos pautam-se nessa lógica binária
heteronormativa do que é ser homem e ser mulher, da qual tratamos
anteriormente. Assim, é o que a sociedade exige: uma condição binária,
hierárquica e reprodutora.
Essa lógica vai muito além dos relacionamentos amorosos.
Como forma de ilustrar mais um exemplo, têm-se os/as transexuais, que são a
maior expressão de rompimento com o discurso totalizante de que o sexo
biológico é inviolável. Contudo, no momento em que se busca adequação da sua
condição psíquica ao corpo, busca-se também uma integração normalizada na
sociedade, sendo o homem e a mulher os únicos modelos de sexo biológico que
encontramos. Deste modo, busca-se de todas as formas desfazer-se do seu sexo de
nascimento, em outra forma preexistente de adequação do corpo. Reproduz-se,
novamente, a lógica binária heteronormativa.
Nos estudos contemporâneos acerca dos sujeitos sociais,
pode-se observar uma gama de pessoas enquadradas em algum conceito, são eles/as:
homem, mulher, intersexual, heterossexual homem, heterossexual mulher,
homossexual homem, homossexual mulher, bissexual homem, bissexual mulher,
transexual homem, transexual mulher, transgênero homem, transgênero mulher, travesti
homem e travesti mulher, não citando outros/as que começam a ser estudados/as
para enquadrar. Foram nomeados agora 15 (quinze) sujeitos classificados em
estereótipos muito bem delimitados. Conceituação que cria padrões e que exclui
quem não se encaixa. Os sujeitos perdem as suas particularidades como pessoas
para fazerem parte de um grupo social.
Diante do contexto
atual, a nomeação de sujeitos e representações, que visa mostrar a existência
de identidades múltiplas é de fundamental importância para a visibilidade dos
sujeitos abjetos, ou seja, daqueles/as que não se enquadram no padrão
culturalmente imposto, as lutas dos movimentos sociais (pró-feminista, pró-gay,
pró-lésbica, etc.) se firmam em cima dessa perspectiva como forma de mostrar
que essas “dissidências” sociais existem e têm direitos a uma vida plena e de
igualdade em relação àqueles/as que se encaixam ao dualismo binário: homem,
masculino, heterossexual – mulher, feminina, heterossexual.
Porém, no momento em
que se cria uma sigla LGBTI, cria-se uma representação, um sujeito que tem que
se adaptar não mais às normas binárias, mas sim àquelas impostas aos sujeitos
desse grupo, ou seja, normatiza-os, e isto, é o que se deve evitar, pois no
momento em que se normatiza esse grupo, uma gama de sujeitos será excluída por
não se adequarem a esse conceito abjeto. Por exemplo, antes o/a “bissexual” não
estava presente na sigla da diversidade sexual (GLS), logo, eram excluídos
desse contexto de luta e de direitos, como também os/as transexuais, travestis,
transgênero, quando a letra T* estava em processo de desenvolvimento, e, mais
recentemente, os/as intersexuais que acaba de entrar nesse rol, apesar da sua
existência ser análoga com a própria existência do ser humano, porém,
reiteradamente, ignorado e esquecido. Ou seja, apesar do objetivo ser a
visibilidade, a sigla da diversidade sexual nomeia e cria normas de
comportamento, expressão, vestuário e não se ajustar a essas normas gera um
ponto de exclusão, pois da mesma forma que existe uma matriz heterossexual,
sendo este motivador de normatização, visivelmente excludente, a ponto de criar
essas novas identidades marginalizadas (identidades pertencentes à diversidade
sexual), a matriz da diversidade sexual (compreendendo hoje os/as LGBTI) também
cria uma normatização de comportamento, o que motiva o surgimento de novas
identidades. Uma vez que, nem sempre o sujeito vai se sentir abarcado por esta
sigla, por isso a sua mutação constante, mas antes de mudar ela exclui, deixa
de proporcionar as suas conquistas a sujeitos que se vêem, conceitualmente,
abandonados por esse universo ou até mesmo a exclusão por parte dos próprios
membros da diversidade.
É importante observar,
portanto, que a sigla, a expressão, as identidades são os objetos de luta,
porém, nem sempre se apresentam como forma de inclusão. O objeto de luta, na
verdade, deveria ser a pessoa, lutar pelos direitos da/o cidadã/o, independente
de qual cidadã/o se fala. Pois, apesar de todos esses sujeitos estarem
aglomerados em apenas uma sigla, eles/as estão separados/as, as suas lutas não
são conjuntas, unitárias, os direitos adquiridos não são explorados por todos/as.
Nesse contexto,
busca-se em Butler (2003) um raciocínio coerente como forma de solucionar essa
classificação excludente, para tanto, adota-se a teoria do gênero performado e
do gênero performático. Neste primeiro, pode-se visualizar bem o que foi
trabalhado até este momento, o gênero como uma expressão externa, para o mundo,
agir de acordo com determinada maneira, delimitado por papéis predefinidos, e
esse agir é o que irá designar qual o seu gênero (adequando-se ao feminino ou
ao masculino). Para o gênero feminino, o seu papel perante a sociedade, bem
como no próprio relacionamento amoroso, será pautado num comportamento mais
vulnerável, passivo, se apresenta com roupas específicas, profissões mais
adequadas, expressando mais amplamente os seus sentimentos, etc. Ressaltando
que essas regras são ditadas desde o nascimento quando os pais definem que se a
filha for mulher o quarto será rosa e para o homem azul; quando adentra a fase
criança a menina deve brincar de boneca, adestrando-a para a futura procriação,
as tarefas do lar, ao homem o jogo de futebol para atestar a sua masculinidade;
na adolescência e fase adulta os poderes midiáticos estabelecem os padrões de
como a mulher deve se vestir para exaltar a sua feminidade para o homem, sendo
afronta à “moral e aos bons costumes” frequentar determinados lugares sem a
presença masculina (exemplo: bares), bem como algumas condutas (exemplo: fumar,
beber em excesso, sexo antes do casamento). Inclusive até a famosa festa de
“debutantes” que a família realiza, historicamente tem como objetivo apresentar
a filha mulher (ao completar quinze anos) à sociedade, como disponível para o
compromisso, o casamento, mostrando a transição da fase criança para a adulta,
já preparada e prendada para o matrimônio. Ao homem, a sua masculinidade é
questionada a todo o momento, sendo-lhe imposto a regular provação de ser
“macho”, viril, de ter o poder de dominação, de ser o pólo ativo nos
relacionamentos amorosos e conduzir as etapas da vida conjugal.
Já em outra
perspectiva, o gênero performático se contrapõe, pois se por um lado a forma
como se age consolida o ser “mulher” ou o ser “homem”, sendo esta uma realidade
interna, sendo isto o que há de mais verdadeiro sobre a pessoa, por outro lado
pode-se dizer que toda essa perspectiva de gênero nada mais é do que uma
construção cultural, fenômeno este produzido e reproduzido até os dias atuais.
Assim sendo, o gênero performático, em outras palavras, afirma que não existe
gênero, os sujeitos são sujeitos, sem pertencer a definições, pois estas são
apenas criações repassadas e consolidadas ao longo do tempo. Essa perspectiva
começa a ser construída quando desassocia sexo, gênero e sexualidade, como um
todo unitário, correlacionado. Para Salih (2012), o gênero, deste modo,
ganharia independência em relação ao sexo, pois o sexo não seria fator
delimitador da forma de viver e de se comportar.
Pensar que o gênero é
performático e não performado é de fundamental importância para se questionar
porque existem papéis de gênero tão veementes definidos e defendidos. Olhar
para um sujeito sem enxergar nele um “homem” ou uma “mulher” é enxergá-lo sem a
obrigatoriedade de comportamentos. Não haveria necessidade de diferenças de
tratamento, disparidades salariais, imposições morais concernentes ao seu
gênero, pois o único ponto que iria diferenciá-los seria a sua configuração
biológica e isto não seria determinante para guiar o restante da sua vida em
sociedade. Contudo, o grande problema em enxergar o gênero performático como
algo possível nos dias atuais é que a própria sociedade tem uma identidade,
esta foi construída baseada em discursos patriarcais-machistas e fundamentada a
partir da religião e, posteriormente, com amparo das ciências. Deste modo, da
mesma forma que é difícil desconstruir uma identidade pessoal, muito mais
complexo é fazer isso com a identidade de uma sociedade, que se constitui a
partir do que considera ser inquestionável.
Trazendo essa teoria
para os sujeitos da diversidade sexual, tê-los como indivíduos sem aspectos
limitadores concernentes ao sexo biológico, gênero, identidade de gênero e
orientação sexual seria o mesmo que colocá-los em par de igualdades com
qualquer outro sujeito que acompanha o padrão da lógica binária heteronormativa.
Deste modo, os conceitos, nomes, nomenclaturas perderiam o sentido e abriria
espaço para uma sociedade que governa para pessoas e não para homens ou mulheres,
para gays ou lésbicas. Assim sendo, o/a
intersexual, por exemplo, teria direito de ter uma vida normal e no momento
apropriado poderia escolher ter um órgão sexual específico ou permanecer com os
dois; o homem que sofreu violência doméstica da sua parceira ou do seu parceiro
também teria a devida proteção da Lei Maria da Penha (Lei de proteção às vítimas
de violência doméstica), pois, deste modo, esta legislação não mais teria como
base o gênero como limitador da sua aplicação, pois o próprio conceito de
gênero perderia o sentido. E os sujeitos seriam apenas sujeitos.
Contudo, ao lado desses
discursos predominantes na sociedade para que se perpetue a constituição de uma
identidade, existem os poderes institucionais que dia após dia atestam a
suposta coerência que permeia a constituição atual da realidade social. Seja
através dos meios midiáticos que impõem padrões de comportamento e o sujeito
que não se encaixa é passível de sofrer uma verdadeira exclusão social; bem
como o poder da igreja, que prega e induz por meio da fé o sujeito a
comportamentos machistas com fundamentos deturpados; a heteronormatividade, que
cria um conjunto de normas a ser respeitadas, buscando a perpetuação da família
nuclear, qual seja a branca, cristã, de classe média e heterossexual, tendo
todos os mecanismos basilares da sociedade a seu favor, como é o caso do Direito
e da Religião. E ao passo disso, na interação social, os regramentos impostos
pelos poderes institucionais, são externados em forma de preconceito, bullying,
violência física e psicológica. Todos esses mecanismos que constituem o meio
pelo qual o sujeito se insere, apresentam-se com práticas e discursos que
mantém as disposições de gênero a serem preenchidas de acordo com cada
configuração biológica.
As discussões acerca da
desconstrução do sujeito apresentam-se em patamares totalmente diferentes
quando comparado o campo teórico e o prático. Se na teoria a visualização dessa
desconstrução abre espaço para uma realidade mais ideal e igualitária, na
prática há um distanciamento. O gênero performático de Butler apesar de ser de
difícil visualização prática, é também um viés importante para a busca da real
efetivação dos direitos sociais de forma isonômica.
*O artigo do dia foi retirado de um capítulo do meu trabalho monográfico (Aplicação da Lei Maria da Penha para os Sujeitos LGBTI: performatividade e entidade familiar).
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