segunda-feira, 22 de junho de 2015

[Postagem do Dia] Entidade Familiar e a Lei Maria da Penha

Qualquer maneira de amor vale amar
Qualquer maneira de amor vale a pena
Qualquer maneira de amor valerá
(Milton Nascimento)


A padronização de comportamento imposta pela sociedade não finaliza apenas na interação do sujeito com o universo público (poderes institucionais), mas também no espaço privado, na sua interação com o outro. Ao se constituírem como parceiros/as amorosos/as, a sociedade continua a exigir um conjunto de comportamentos, até que se atinja a almejada constituição familiar de acordo com os padrões da família nuclear que é: o casal branco, de classe média, cristão e heterossexual (Jane Felipe, 2007). Logo, relacionamentos que se enquadram neste modelo são tidos como verdadeiros e legítimos, consequentemente, sendo valorizados e almejados. Deste modo, sendo espelho para os demais indivíduos, como interação normatizada e normalizada.
Adentrando numa visão do amor romântico, a família é o resultado de um estreitamento sentimental, no qual passa por algumas etapas: o primeiro contato, o namoro, o noivado, o casamento e a procriação (nascimento dos filhos, atestando à parceira a sua condição de mulher); como forma de exteriorizar para a sociedade a veracidade de um sentimento que só diz respeito aos companheiros. Essa construção familiar que se dá por meio de condutas idealmente regradas, é ensinada desde a infância, não apenas na literatura romântica, como também nas músicas, novelas, filmes e rodas de conversas entre amigos/as, no qual se estimula à mulher a esperar pelo seu “príncipe encantado”, o homem perfeito, com qualidades baseadas na moral cristã. Esta lógica reproduz fielmente um ideário preexistente e propagado ao longo dos séculos.
Em outro sentido, em uma visão não tão romântica, deixando de lado os tradicionalismos cristãos, pode-se observar o casamento como uma apólice de seguro e não necessariamente como o estreitamento de uma relação. Constituindo-se como um contrato entre duas pessoas. Seja para prender o/a seu/sua companheiro/a em um relacionamento com maior grau de seriedade, em resposta às imposições sociais, ou, para assegurar direitos jurídicos inerentes a esta instituição. Se o que o se objetiva é a primeira hipótese, o amor romântico talvez nem exista, pois a constituição do casamento se deu por motivos alheios aos desejos amorosos, transmutando um relacionamento que deveria ser saudável em uma relação fadada à infelicidade. Neste caso, os resultados são moralmente desastrosos, pois pode ocorrer a prática de traição, falta de reciprocidade ou até mesmo a violência entre si.
É nessa perspectiva que se faz necessário discutir o que realmente se entende por casal/casamento, e, até que ponto, a definição de família nuclear é necessária para a exclusão de direitos para sujeitos que não se encaixam nessa perspectiva. A respeito disso, Tania Navarro Swain indaga, não apenas os casais em relação heteroafetiva como também na relação homoafetiva:

Mas a evidência da noção de “casal” se estilhaça logo que começamos a interrogar com maior acuidade sua constituição: com efeito, o que é um casal? Duas pessoas que se amam? Que vivem juntas? Que dormem na mesma cama? Sua formação está baseada em uma relação sexual? Ou quando há uma emoção partilhada? Que gênero de emoção? Física? Todas as opções? Uma só dentre elas? Quantas duplas heterossexuais ou homossexuais não dormem mais juntos, não “fazem mais amor” e são vistos/as sempre enquanto um casal? E todas estas questões não se colocam no vórtice de um imaginário social que se constrói no momento de sua enunciação? A evidência da noção de “casal” se esconde no esforço mesmo de sua definição. (SWAIN, 2001, p. 91).

A partir dessas indagações, podem-se suscitar outras, que se correlacionam: como é o caso da mulher que não pode engravidar, se aquela do sexo feminino, com todas as pressões sociais impostas ao seu gênero, no qual impõe a necessidade de procriação, caso não seja possível devido a sua infertilidade, esta seria menos mulher? O mesmo deve ser perguntado ao homem infértil, este deveria então deixar de ser considerado homem? Ou menos homem? É nessa análise que se suscita novamente o gênero performático de Judith Butler. Caso não exista uma definição para os sujeitos, também não haveria necessidade de se questionar o que seria um casal, uma família, ou quem são os sujeitos que poderiam casar e constituir uma família. Nesse sentido, porque se deve considerar casal um homem e uma mulher que estão juntos exclusivamente devido a um casamento civil, sem compartilharem mais de emoções, respeito, sem “fazer mais amor”? E, ao mesmo passo, não se deve considerar casal duas mulheres que se amam, coabitam, se respeitam e “fazem amor”?
Esse entendimento atual, que constitui a licitude social de um determinado grupo adequado aos padrões, e, desconstitui aquele que foge a estes, é patrocinado pelas mesmas instituições de poder (religião, meios midiáticos, política, direito, ciências, senso comum, etc.) que dita o que o sujeito é, o que ele pode ser e o que ele pode fazer, bem como que legitima as relações de gênero e de poder.
Atualmente, soa controverso limitar a família aos eixos sexo-casamento-reprodução, pois, deste modo, excluiria uma gama de sujeitos: por exemplo, é comum um casal, com filhos, que moram juntos, não se casarem; como também é possível que este mesmo casal tenham tido o filho sem a necessidade da prática sexual, adotando-o ou por inseminação artificial; podem também optar por não terem filhos; seriam, então, desconsiderados como entidade familiar? A limitação para se enquadrar a um padrão cristão é um tanto retrógrada e excludente, sendo importante questionar não com o intuito de se dar origem a outro padrão ou colocar fim neste, mas para compreender que a sociedade vive em constante mudança e as mais diversas formas de família merecem total e efetiva proteção do Estado. Acerca disso, a jurista Maria Berenice Dias discorre:

Entre os rumos de transformação das relações familiares, a reestruturação da família do tipo patriarcal para uma organização democrática, igualitária, pluralista, permitiu a ocorrência de importante fenômeno: a desbiologização, a substituição do elemento carnal pelo elemento afetivo ou psicológico. (DIAS, 2014, p. 105, grifos da autora).

Compreender a performatividade de Butler com o fenômeno da “desbiologização” cunhado por Maria Berenice Dias pode-se então estender o conceito de família a um universo extremamente amplo, permitindo que a ele se encaixem casais independentemente do seu sexo, gênero, identidade de gênero ou orientação sexual. Podendo, inclusive, até não ser casal; neste caso, considera-se a avó com o neto, os tios com o sobrinho como uma entidade familiar e que podem usufruir de direitos como qualquer outra família. Essa visão acarretar a tutela de uma diversidade de configurações familiares, que existem e não há como negar. A respeito disso, já foi estatisticamente mensurável pelo IBGE na última década alguns desses novos formatos:

No período de 2001 a 2011, houve modificações na distribuição dos arranjos com parentesco, com redução do peso relativo daqueles constituídos por casal com filhos (de 53,3% para 46,3%) e, consequente, aumento dos casais sem filhos (de 13,8% para 18,5%). Nos arranjos constituídos por mulher sem cônjuge com filhos, os chamados arranjos monoparentais femininos, a PNAD[1] 2011 mostrou uma ligeira redução. Tal padrão de organização dos arranjos está associado à tendência de queda da fecundidade, que, por sua vez, também pode ser atribuída ao desenvolvimento das relações de gênero, no contexto das transformações econômicas e sociais por que passa a sociedade brasileira contemporânea. (IBGE, 2012, p. 84).

De acordo com esse entendimento, a tutela do Estado passaria a abranger essas configurações familiares como legítimas, abarcando de pronto todos os outros campos fomentadores de direitos: na área penal, civil, constitucional, previdenciária, entre diversas outras; e, deste modo, asseguraria as prerrogativas necessárias concernentes à dignidade da pessoa humana. Nessa perspectiva, entende-se que casais homossexuais, como também a família monoparental ou de outra formatação, constituem família, logo, são detentores de todos os benefícios assegurados à família heteronormativa.
E numa perspectiva, tratada anteriormente, de re(produção) da lógica binária heteronormativa, esses sujeitos apesar de se apresentarem diante de contornos que se destoam do que está padronizado, constituem-se a partir da adoção de papéis preestabelecidos. Os padrões de gênero é uma prisão simbólica, porém não menos cruel do que a física, pois estão construídos a partir de determinados valores morais hegemônicos e relações de poder. Numa perspectiva foucaultiana, presentes nos espaços públicos e nos privados, no qual não se permite, “moralmente” falando, uma ruptura completa com esse contexto imposto.
Os/as parceiros/as que hoje se enquadram na ideia culturalmente conceituada de casal, independentemente do seu sexo, gênero, identidade ou orientação sexual, estão inseridos/as em um espaço de verdadeira guerra, polarizando-se inconscientemente, cada um/a ocupando a sua posição na relação, seja de dominação ou subordinação, construindo lógicas hierárquicas e não igualitárias. Para os sujeitos LGBTI, essas construções de identidade no espaço privado, que reproduzem as dicotomias de macho-fêmea, superior-inferior, forte-vulnerável, terão peculiaridades que serão decisivas para delimitar o seu espaço no relacionamento.
Para Paiva (2007) a própria relação sexual já define essa polaridade, no momento em que os sujeitos se enquadram nos papéis de “ativo” e “passivo”, e este último ocupa uma posição de dependência, subordinação perante o primeiro. Já Castro (2007), entende que esta polaridade evidente na homoconjugalidade está fundamentada em uma dinâmica de gênero e relação de hierarquia que vem a reproduzir os modelos da heteroafetividade, porém esta reprodução não é suficiente para explicar essa prática.
Tanto na concepção de Paiva, quanto na de Castro, observa-se que as atitudes dos/as parceiros/as estão condicionadas a elementos que ultrapassam a particularidade do seu relacionamento, invadindo as regras impostas. No momento em que se vê a necessidade de adequação de papéis nas relações sexuais homoafetivas, remete-se já aos papéis do homem (ativo) e o da mulher (passivo), logo, o parceiro “passivo” ocupa um lugar já culturalmente submisso, no qual pertence à mulher, e o parceiro “ativo” é detentor de superioridade hierárquica, pois está adotando um papel culturalmente respeitado – o do homem. Polarizando, destarte, os/as parceiros/as. Na outra concepção, a explicação para a polaridade vai muito além de uma prática sexual, ela está enraizada nos problemas de gênero, nos comportamentos predefinidos para o homem e a mulher e que são incorporados pelos sujeitos LGBTI, no seu modo de agir no espaço público e privado. Logo, uma possível conclusão é de que, a polarização dos sujeitos em qualquer tipo de relacionamento amoroso é decorrência da (re)produção da lógica binária heterossexista.
O grande problema dessa polarização que existe nos arranjos amorosos é a sua consequência. Em uma perspectiva idealizada, um casal homoafetivo, por exemplo, estaria – devido à sua condição biológica – em par de igualdades, ou seja, nenhum sujeito seria superior a outro, as decisões seriam conjuntas, o preconceito de gênero no espaço privado inexistiria. Tendo, portanto, uma relação saudável, baseada no afeto, elemento fomentador da família. Não reprimindo os sujeitos, portanto, à violenta ordem natural do divino. Porém, não se pode analisar esse relacionamento a partir de um determinismo biológico como já dito anteriormente, pois a construção histórico-social está presente na formação do sujeito, e o afeto não é o único ponto fomentador para a união conjugal.
A família tradicional traz consigo uma história muito mais pautada em unidade produtiva do que em unidade emocional. Já com indícios de se romper com esse construto social Michel Foucault (1988) em “História da Sexualidade I” associa essa constituição familiar burguesa a mecanismos de controle de sexualidade, ou seja, seria mais um dispositivo regulador das práticas comportamentais concernentes a padrões de gênero.
Mais um apontamento fomentador para uma possível solução para a desconstrução da família burguesa pautada na hierarquização e polarização de gênero é formulada por Antony Giddens (1993), que propõe a democratização da intimidade, no qual busca romper com os padrões socialmente construídos por meio do que ele chama de “relacionamento puro”, que visa substituir a ideia de “amor romântico”. Nessa perspectiva, o tradicional daria lugar à busca da satisfação emocional do casal de forma mútua, com a construção de parcerias conjugais igualitárias da perspectiva de gênero. Por fim, alcançando uma plena compatibilidade do espaço privado com o público. E evitando, destarte, a reprodução dos papéis de dominação já culturalmente impostos e que acarretam diversas sequelas, inclusive a violência doméstica.



[1]PNAD: Significa Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, no qual, obtém anualmente informações sobre características demográficas e socioeconômicas.



*O artigo do dia foi retirado de um capítulo do meu trabalho monográfico (Aplicação da Lei Maria da Penha para os Sujeitos LGBTI: performatividade e entidade familiar).

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