quarta-feira, 23 de abril de 2014

[Postagem do Dia] Sofrer a dor do outro

A sociedade brasileira sempre foi repleta de dores, até mesmo antes de ser Brasil. Quando os “brancos” chegaram e nos colonizaram, implantaram seus costumes e nos chamaram de “sem cultura”, ignoraram nossas crenças, nossa cor, vestimentas. Éramos brutos, sem educação, hereges da sua religião. Puseram-nos roupas, cortaram nossos pelos, nos mostraram espelhos. Juntaram nossas mãos e nos fizeram ajoelhar em frente a uma cruz. Depois disso, continuamos ajoelhados, em reverência, aclamando-os, obedecendo-os, sendo sua propriedade. A escravização foi uma das grandes dores. Outras, já tinham nota, como o enclausuramento da mulher às tradições machistas. O encarceramento do homem ao temor da religião. E as dores mais recentes: o ser diferente.

Aquele que não obedece aos regramentos sociais sente a dor da rejeição, da escravidão de uma vida alheia ao convívio pacífico. Mas os discursos é que o preconceito não existe. Realmente, não existe, desde que você esconda quem você deseja ser. A aceitação, desde sempre, só começou a acontecer quando aqueles que dominam e ditam as regras passaram a sentir a dor daquele que está sendo oprimido. Basta observarmos: a mulher, por exemplo, passou a ter importância na vida cotidiana quando a mesma começou a invadir o mercado de trabalho, começou a mostrar que consegue ter um desempenho profissional em pé de igualdade aos homens, só assim passaram a ser realmente notadas e a sua dor sentida. Da mesma forma ocorre, neste momento, com os componentes do chamado LGBTTI, mesmo que muitos ainda estejam “dentro do armário”, aqueles que bravejam e lutam por sua classe estão começando a ter expressividade nas bancadas da legislação, magistratura, no comando das grandes empresas e até mesmo dentro da própria religião.

Assim sendo, aqueles que até então estavam sendo invisíveis, hoje começam a ganhar força para serem enxergados e fazendo com que aqueles que estão dentro do preestabelecido sintam a sua dor.

Maria Berenice Dias foi a primeira mulher a ocupar um cargo de juíza na magistratura do Rio Grande do Sul e também de desembargadora, num período em que as inscrições de mulheres para esses concursos públicos não chegavam nem a ser homologadas. Desde muito cedo, ela sentiu a dor do que é ser mulher na nossa sociedade, como foi quando teve o seu primeiro filho e não lhe foi concedido a licença maternidade (hoje de 120 dias), apenas licença doença (30 dias), a partir disso, ficou sensível a diversas outras opressões. Hoje, aposentada, levanta a bandeira da causa LGBTTI, por esse motivo até muito questionada a respeito da sua orientação sexual, que não é homoafetiva (termo criado e difundido pela mesma), inclusive já foi casada, durante a sua vida, com cinco homens diferentes. Deixando claro, dessa forma, que para a luta da efetivação dos direitos humanos não é necessário se enquadrar nos mais diversos grupos sociais, apenas saber enxergar e ter pulso para encarar uma sociedade preconceituosa e excludente.

Um dos marcos da sua luta é o Projeto da Diversidade Sexual, que garante uma série de direitos às lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgênero, travesti e intersexuais. Sendo ela Presidente da Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil, está com uma campanha (inclusive virtual) para levantar a assinatura de 1% dos eleitores brasileiros, para que o Projeto possa ser encaminhado ao Congresso Nacional como uma proposta de Iniciativa Popular.

Apesar dos grandes avanços no âmbito do Poder Judiciário, como é o caso da prerrogativa de casamento para os homoafetivos, a luta é para que o Legislativo largue um pouco os posicionamentos conservadores, o que é muito difícil diante da expressiva bancada religiosa nas casas legislativas. Que, a respeito do Estatuto da Diversidade Sexual disse que é de “iniciativa do Movimento Gayzista para implantar no Brasil uma espécie de ditatura totalitária gay”. Assim sendo, a garantia desses direitos andam a passos lentos, no âmbito do Poder Legislativo.

O judiciário está apresentando avanços expressivos nessa temática, porém, quando o legislativo não assegura previamente, o processo para a efetivação dos direitos é muito mais exaustivo e longo. É necessário que se enxergue que o grupo que até um tempo desses era tido como invisível, hoje luta. E eles querem apenas trabalhar sem medo de ser demitido por causa da sua orientação sexual ou por ser transgênero, travesti etc., poder sair às ruas sem medo de ser espancado ou morto, poder andar de mãos dadas com quem ama sem receber olhares preconceituosos, casar com quem sente afeto, ter filhos e assegurar às suas famílias os mesmos direitos que a família heterossexual tem. As dores por eles sentidas que se estenda, pois no Brasil as coisas só vêm funcionando dessa forma: quando sentimos a dor do outro.


*Texto publicado na versão impressa do Jornal de Fato, página 2, do dia 23/04/2014, disponível também no link: edição 581.

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