MARCIA TIBURI
Anticristo, o polêmico filme de Lars Von Trier de 2009, conta a história de uma mulher que sofre pela morte acidental do filho pequeno. A opção do diretor dinamarquês parece ser a de investir na mítica culpa feminina estabelecendo um elo entre o desejo sexual irrefreável da personagem – caracterizada como quase ninfomaníaca – e o acidente que vitima a criança. O conflito entre a mulher e a mãe talvez esteja no fundo obscuro do filme. Mas isso é o que menos importa diante de um elemento mais curioso e politicamente mais perigoso.
Trata-se do fato de que a personagem interpretada pela atriz Charlotte Gainsbourg é uma estudiosa do que se chama de “feminicídio”, do qual ela mesma será vítima. Ela morre ao final, depois de ter mutilado o marido e ter se automutilado sexualmente, como se seus corpos desejantes devessem ser punidos de um crime. Mas, obedecendo à realidade, ela é que é morta e queimada pelo marido diante de sua casa. A morte por incineração é comum como crime doméstico em alguns países. O que o filme nos diz é que o destino das mulheres é padecer sob a culpa até sua eliminação como papel queimado.
Marcadas para morrer
Feminicídio é um termo cada vez mais corrente entre nós. Usado há séculos para falar do assassinato de mulheres, ele foi retomado em termos críticos há poucas décadas por uma teórica feminista inglesa chamada Diana Russell, que percebeu o significado misógino deste tipo de assassinato. Fala-se de feminicídio desde então para referir-se ao assassinato de uma pessoa por ela ser “mulher”.
A pergunta simples que é preciso fazer nesta hora envolve entender o elemento absurdo que a constitui: por que alguém seria morta apenas por sua condição de mulher? Ou, na via do assassino, por que alguém mataria outrem pelo fato de que este outro seja “mulher”? Podemos nos perguntar o que há de crime ou pecado, de ofensa ou de erro em ser “mulher”? Qual o teor desse ódio?
Não há discussão sincera sobre este tema que não seja obrigada a lutar contra o cinismo de respostas como a que dá Lars Von Trier em seu filme exemplar: a culpa é das próprias mulheres. O preço a ser pago para a portadora da culpa é a morte. O argumento da culpa feminina é usado por assassinos, estupradores e praticantes de violência contra mulheres em geral. O algoz se defende quando a opinião pública o questiona dizendo que “ela estava querendo”, que “ela sabia o que iria acontecer”. Os estupradores autorizam-se a estuprar e até matar porque a “outra” não se “portou” como “devia”. Casos exemplares em nossa época não podem ser esquecidos: o da jovem indiana morta em dezembro do ano passado e das garotas estupradas pela banda New Hit, na Bahia.
Assim como genocídio é o termo usado para falar do assassinato étnico, feminicídio é o termo usado para falar de assassinato de mulheres motivados pelo fato de que sejam mulheres. É como se as mulheres estivessem desde sempre marcadas culturalmente por seu “sexo”, como disse Simone de Beauvoir, mas neste caso, mais ainda, é preciso ver que marcadas para morrer por conta deste “sexo” com que são marcadas culturalmente.
Sob a prática patriarcal oculta-se mais do que o absurdo do suposto “motivo para os homens”. A autorização soberana dos homens contra as mulheres é a característica do Patriarcado: o poder total na mão dos homens apenas porque são homens. O patriarcado é uma espécie de ordenamento fundamentalista, simbólico, político, econômico e jurídico, que implica que homens possam fazer o que quiserem com mulheres e nem serem culpados por seus atos. O rebaixamento das mulheres em qualquer campo é a ponta do iceberg do assassinato de antemão autorizado e sempre possível.
O patriarcado tratará como anomalia tudo o que se coloca contra a sua ordem. Daí a antipatia que tantos têm pela coragem feminista: ela representa a contraparte soberana que assusta porque ameaça mostrar o jogo sujo das relações de gênero a que as mulheres estão submetidas.
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