quarta-feira, 3 de abril de 2013

Horrível e Sagrado

Retirado de BRAVO! Online


Admirado por pensadores como Roland Barthes e Michel Foucault, o escritor francês Georges Bataille (1897-1962) notabilizou-se por uma obra libertária, influenciada pela psicanálise, pela antropologia e pelo surrealismo. Em O Erotismo, ele propõe uma definição para o termo que o associa à transgressão de regras e à religião, transformando o ensaio num clássico. Em 1957, ano da publicação do livro, Bataille escreveu uma carta a Roger Caillois, sociólogo e crítico literário, submetendo-lhe o projeto de uma revista sobre o mesmo tema, Genèse, que não saiu do papel. Na missiva, o escritor incorporou um texto que sintetiza o ensaio. Inédito por aqui e apresentado a seguir, A Significação do Erotismo integra a nova edição brasileira do livro, que será lançada em abril pela Autêntica.
“O tempo presente viu ocorrerem importantes mudanças nas condições da vida sexual.
Convém dar a essas mudanças o nome de revolução sexual. Elas acontecem por etapas, há várias gerações. Ligadas ao conjunto de nossas transformações sociais, foram, em particular, a consequência do abalo que se seguiu à Primeira Guerra Mundial.
Nossa revolução sexual tem múltiplas significações. Houve inicialmente o movimento de oposição às regras estreitas que paralisavam as relações dos sexos entre si. Ao mesmo tempo, a revisão de uma moral fundada sobre a noção de pecado sexual e de vergonha. O homem moderno teve que responder, por outro lado, à necessidade de esclarecer aquilo que permanecia nele de sombrio e fugidio. A humanidade devia enfim conhecer a si mesma inteiramente, devia dominar seus poderes e reencontrar sua unidade.
Essas mudanças foram ajudadas e aceleradas pelas descobertas da psicologia moderna e da psicanálise; o progresso dos conhecimentos em matéria de sexualidade as assegurou e aumentou seu alcance. Não apenas nossos costumes, como também a consciência aprofundada que temos de nós mesmos, nos opõem de maneira contundente à humanidade anterior a essa revolução sexual. Não é que a humanidade volte à ingenuidade dos povos selvagens, mas, saindo de um mundo onde seus impulsos mais fortes eram cegamente reprimidos, abre-se diante dela a possibilidade de uma lucidez sem igual. Ela se beneficia de uma liberdade real, mas tem a memória de um passado recente: situa essa liberdade em relação a uma servidão cuja experiência ainda traz inscrita em si.
As descobertas de Freud, começadas no fim do século passado, tiveram uma importância decisiva. Elas modificaram estranhamente a imagem que o homem fazia de si mesmo. A psicanálise substitui o idealismo tradicional por uma representação mais modesta. Segundo ela, o impulso sexual começa com a vida. E as desordens que, desde a tenra infância, esse impulso nos impõe têm consequências na idade adulta. Do berço ao leito de morte, a sexualidade está na base de uma agitação que a ingenuidade do pensamento comum, imbuído de idealismo, desconhece. A sexualidade não é, como foi apressadamente deduzido, o fundamento da vida humana: foi sem dúvida o trabalho que, desde a origem, diferenciou o homem do animal. Mas as mentiras do idealismo foram possíveis na medida em que uma humanidade cega negou os impulsos sexuais que, todavia, não haviam cessado de agitá-la profundamente. Os trabalhos de Freud permitiram saber que os impulsos sexuais se traduzem também em nossas aspirações elevadas: eles se exprimem, em particular, na religião e, finalmente, na arte e na literatura. Estamos assim, graças à psicanálise, nos antípodas da antiga maneira de ver, para a qual a sexualidade era a tara congênita de uma criatura que aspira à perfeição.
Se os resultados da psicanálise estão na base do conhecimento moderno da sexualidade, existe a possibilidade hoje de, sem negligenciá-los, ir ainda mais longe. Podemos reencontrar a significação do erotismo no plano em que se colocava outrora a religião. Talvez cheguemos assim a uma das descobertas mais importantes de nosso tempo. Pelo menos é indo nessa direção que podemos ter acesso às últimas consequências de nossa revolução sexual.
Eis o que hoje podemos postular:
EM SUA VERDADE FUNDAMENTAL, O EROTISMO É SAGRADO, O EROTISMO É DIVINO.
Reciprocamente, o sagrado, o divino, se podem se afastar do erotismo, têm em sua base a violência e a intensidade deste, participam, em seu fundamento, do mesmo impulso.
A humanidade profunda só se revela a nós se reconhecemos a unidade do sentimento divino – do estremecimento sagrado – e do erotismo liberado da imagem grosseira imposta pela pudicícia tradicional. (...)
Isso não deve nos impedir de ver, em contrapartida, os aspectos alarmantes do erotismo; geralmente, o divino, o sagrado também são acompanhados de horror. Em todo caso, emana do erotismo algo de trágico, que não podemos negar e que devemos considerar antes de tudo em nossa meditação profunda.
O marquês de Sade exprimiu esse lado da realidade sexual. Quaisquer que sejam os aspectos insustentáveis de sua obra, ele compreendeu que o erotismo – e o horror implicado no fundo do desejo erótico – colocava em questão o homem inteiro. Devemos reconhecer desde o princípio que, falando do erotismo, levantamos a questão mais pesada.
Quero lembrar aqui esta frase de Maurice Blanchot [escritor francês] a respeito do pensamento de Sade:
Não estamos dizendo que esse pensamento seja viável. Mas ele nos mostra que entre o homem normal, que encerra o homem sádico num impasse, e o sádico, que faz desse impasse uma saída, é este que conhece melhor a lógica de sua situação e que tem dela o entendimento mais profundo, a ponto de poder ajudar o homem normal a se compreender a si mesmo, ajudando-o a modificar as condições de toda compreensão.
A meu ver, essa frase exprime a dificuldade essencial que devemos perceber quando abordamos o domínio sagrado do erotismo.
O erotismo abre um abismo. Querer iluminar suas profundezas exige ao mesmo tempo uma grande resolução e uma calma lucidez, a consciência de tudo aquilo que uma intenção tão contrária ao sono geral coloca em jogo: é certamente o mais horrível, e é também o mais sagrado.”
O livroO Erotismo, de Georges Bataille. Tradução de Fernando Scheibe. Editora Autêntica. Preço a definir. Lançamento previsto para abril.

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