Depois de mergulhar no universo depressivo de Lupicínio Rodrigues, Arrigo Barnabé retorna com uma banda só de mulheres e um novo velho lema: “Pô, amar é importante!”
por Eliete Negreiros
O telefone tocou:
- Eliete, é o Arrigo. Olha, hoje à tarde vou ensaiar aí do lado de sua casa. Passa lá para você conhecer a minha nova banda.
- Nova banda? Como é, Arrigo?
- Ah! Só vendo. Vai lá. Você terá uma surpresa.
Meu amigo Arrigo é, de fato, uma pessoa surpreendente. Na vida e na arte. O inesperado faz parte do seu jeito. Quando nos encontramos pela primeira vez, em 1973, eu cantava, tocava violão e estudava filosofia, conhecia bem a música popular brasileira e tinha uma relação catártica com ela: ouvia tudo, gostava das canções, procurava aprendê-las e as usava para meditar sobre a existência. No canto, queria expressar meus sentimentos. Ainda hoje sou assim. Não reparava na estrutura da canção, em como ela é feita. Com Arrigo Barnabé, cantor e compositor de Londrina que se radicou em São Paulo, aprendi a pensar a música. De início, isso me aborrecia. Como assim? Pensar? O romantismo corre em minhas veias, uma herança fatal, música é para sentir. Mas fui descobrindo uma outra maneira de perceber as composições, uma atenção à sua forma. Novos horizontes. Arrigo me mostrou coisas que eu ignorava, outras sonoridades: Igor Stravinsky, Arnold Schöenberg, Karlheinz Stockhausen. Fiquei encantada.
O trabalho do meu amigo tem uma complexidade e abrangência muito grandes. O público o conheceu no festival da TV Cultura em 1979, por meio de duas canções: Infortúnio e Diversões Eletrônicas. Foi uma aparição. Que som era aquele? Arrigo não só atualizava o tropicalismo. Ele ia além, ao incorporar elementos da música erudita contemporânea na música popular. Em nenhum outro compositor brasileiro esse entrecruzamento se deu de maneira tão radical, tão intensa. É na obra do Arrigo que a linguagem da música popular se transforma, saindo do campo tonal e modal e percorrendo outros caminhos: a polirritmia, o serialismo, o atonalismo e o dodecafonismo.
Vanguarda Paulista. Assim fomos chamados – ele, eu e outros jovens artistas comprometidos com toda aquela renovação: Itamar Assumpção, Luiz Tatit, Ná Ozzetti, Vânia Bastos. Vivíamos o período sombrio da ditadura militar, atmosfera pesada, densa, sem perspectivas. Foi sob esse clima que, em 1980, Arrigo lançou seu disco de estreia, Clara Crocodilo. O álbum mistura elementos do rock e da música erudita contemporânea com a narrativa dos gibis e a crônica policial radiofônica, à moda de Gil Gomes. Também abraça o kitsch e o futurismo, disseminando seres monstruosos, marginais, que habitam uma ambiente tenso, de humor corrosivo, à beira do horror. O futurismo se evidencia, por exemplo, na máquina que canta em Office-Boy: “Ela era caixa num supermercado/ Todo dia ela só, só apertava os botões/ E aquelas máquinas cantavam”.
De um modo geral, os personagens das letras de Arrigo movimentam-se no espaço degradado das metrópoles modernas, violentas e desumanas, enfeitiçados por diversões baratas e eletrônicas. Entre as canções antológicas que ele assinou, destacam-se pelo menos outras três: Londrina, de extrema beleza, que arrancou elogios de Tom Jobim, a cósmico-existencialista Mirante e Cidade Oculta, em que a humanidade desencantada é salva por um androide romântico. Mais recentemente, no espetáculoCaixa de Ódio, Arrigo interpretou clássicos deprês do gaúcho Lupicínio Rodrigues de um jeito absolutamente original, estabelecendo pontes com a literatura, os quadrinhos e o cinema.
Música de câmara
A tarde finalmente chegou. Peguei um casaco e fui ver o tal ensaio. O que Arrigo estaria preparando? Logo de cara, em vez do Tonho Penhasco, do Duda Neves e do Paulo Braga, encontrei quatro belas e jovens instrumentistas: Mariá Portugal (bateria), Ana Karina Sebastião (baixo), Mônica Agena (guitarra) e Maria Beraldo Bastos (clarinete). Nome da banda? O Neurótico e as Histéricas. Nome do trabalho em gestação? Pô, Amar É Importante, título de uma canção que Arrigo e Tetê Espíndola gravaram juntos nos anos 80 e que, originalmente, faz parte do LP Como Essa Mulher, lançado em 1984 por Hermelino Neder, outro integrante da Vanguarda Paulista, e seu irreverente grupo, o Football Music. O disco, aliás, norteia todo o novo projeto. Influenciado pelas folksongs do italiano Luciano Berio, o álbum funde música popular com música de câmara e traz pérolas tão luminosas quanto Você Duvida?, que integrará o repertório do Neurótico e das Histéricas. Após uma temporada de shows, a banda entrará em estúdio.
O novo voo de Arrigo revela-se, por um lado, muito diferente do anterior, que espelhava a amargura de Lupicínio. A jornada, agora, é mais pop e divertida. No entanto, as marcas inconfundíveis do meu amigo continuam presentes: o deboche, a sátira e o humor negro, que nos permitem zombar de nossas próprias mazelas.
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