terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Espírito Antropofágico

Extraído da BRAVO! Online:



Na fazenda da família em Areia, no interior da Paraíba, o garoto José Augusto da Costa Almeida costumava passar as tardes agachado em algum canto da sala, com o olhar fixo sobre o avô paterno. Ex-senhor de engenho, dessas figuras que moram nos livros de história, acostumadas a negociar escravos e cobrar produções satisfatórias de açúcar, o avô nunca abandonou uma postura meio mítica. Vivia cercado de gente, gostava de ser bajulado. O neto, à distância, transformou-o em sua divindade. E daquela época guarda as mais fortes lembranças, dos cheiros da casa aos desenhos do ladrilho em que se acocorava para espiar o deus particular.
A intensidade dessa relação nutrida assim, com poucas palavras, diz muito sobre o artista que o menino se tornou. José Rufino era o nome do avô e agora é o seu, adotado na década de 1980, no início da carreira, e hoje completamente incorporado por ele. Rufino, o artista, chega a gaguejar quando indagado sobre o registro que aparece em sua certidão de nascimento: “Meu avô morreu quando eu tinha 14 anos, mas aquele tempo continua muito mais presente em mim do que todo o resto que veio depois. Vai ser sempre assim”.
Por “todo o resto que veio depois” deve-se entender um diploma em geologia na Universidade Federal de Pernambuco, uma pós-graduação em paleontologia na Universidade de São Paulo, a produção de um romance inédito, pelo menos 30 exposições individuais de peso na cena contemporânea mundial, mais participações em mostras coletivas de prestígio (foi destaque na 25ª Bienal de São Paulo) e diversas honrarias (venceu o Prêmio BRAVO! Bradesco Prime de 2010 por Faustus, que tomou o Palácio da Aclamação, em Salvador). José Rufino resume tudo isso rapidinho e volta ao avô: “Minha família tinha uma fazenda só para criar e vender escravos. Até na nossa casa da cidade havia senzala. Ainda pequeno, cheguei a ver correntes nas paredes e nos calabouços”.
Mais velho, diante das correspondências que o avô trocou ao longo da vida, Rufino exorcizou os fantasmas, digeriu o peso do passado e colocou tudo pra fora na série Cartas de Areia, feita no começo dos anos 90 com desenhos e pinturas sobre os próprios documentos de família. De cara chamou a atenção da crítica, que o apelidou de “artista da memória”. Canceriano de 3 de julho de 1965, do tipo que se enquadra mesmo nas descrições do signo – o apego ao passado, certa timidez –, Rufino adora abrir antigas gavetas, mas não concorda totalmente com o rótulo: “A história, para mim, não é só bucólica. De certa maneira, eu a reinvento, devolvo-a em outra forma”.

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